“Delsol nos lembra, a cristandade não é cristianismo, e o fim do primeiro não é o fim do segundo. Ela tem receio do excessivo orgulho cristão do passado, 'que pode se assemelhar ao masoquismo'. Nós corretamente julgamos que aspectos da cristandade foram distorções do Evangelho, mas Delsol, como boa historicista, vê pouco sentido em condenar aqueles no passado que não tiveram o benefício de nossa retrospectiva. Delsol não está para louvar nem para condenar a cristandade, mas para enterrá-la. Ela está preocupada, porém, que em seu medo de repetir os erros da cristandade, os cristãos acabem silenciando sua voz distinta”, escreve Frederick Christian Bauerschmidt, professor de Teologia na Loyola University Maryland e diácono da Arquidiocese de Baltimore, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 16-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Jean-Luc Marion (1946) e Chantal Delsol (1947) são dois proeminentes filósofos franceses abertamente católicos romanos. Isso isoladamente os colocaria, na mente de muitos dos seus compatriotas, em um campo cultural e político conservador, embora a verdade seja muito mais complexa. No último ano, o livro de Marion “A Brief Apology for a Catholic Moment” (“Uma Breve Apologia para o Momento católico”, em tradução livre), de 2017, e o de Delsol “La Fin de la Chrétienté” (“O fim da cristandade”, em tradução livre), foram traduzidos para o inglês. Ambos trabalhos focam no papel da Igreja em uma cultura descristianizada; ambos mostram as negociações complexas necessárias para estar entre o que Marion chama de “desastres gêmeos e rivais”: o integralismo, que procura estabelecer uma ordem social cristã, e o progressismo, que arrisca deixar a identidade cristã evaporar.
A religião tem, é claro, exercido um papel muito diferente na França moderna, altamente secular, mais que nos EUA (país que Delsol chama de “bíblico-revolucionário”). Mas as diferenças não são tão grandes como às vezes se diz. Como demonstrado pela “Revolução Silenciosa” no Quebec dos anos 1960, e ainda mais pelas mudanças culturais recentes na Irlanda, a secularização de culturas religiosas aparentemente robustas pode acontecer muito rapidamente, e há razões para pensar que nosso país – os EUA – está passando por uma mudança tão grande. Assim, os livros de Marion e Delsol podem nos ajudar a contemplar nosso próprio futuro mais secular.
Jean-Luc Marion ficou conhecido pelos leitores anglófonos primeiro, três décadas atrás, com o livro “God Without Being” (“Deus sem o Ser”, em tradução livre). Esse trabalho de teologia filosófica abraçou a crítica pós-moderna de “onto-teologia” embora apontando algumas conclusões surpreendentes de tal crítica, incluindo uma defesa robusta do que parecia a mais ontológica das doutrinas teológicas: a transubstanciação. Devido a alguns movimentos intelectuais contraintuitivos e seu idioleto heideggeriano pós-moderno, esse livro ajudou a assegurar a reputação de Marion como um pensamento desafiador e altamente especulativo. Mas Marion é também um católico praticante que se preocupa apaixonadamente sobre o lugar da Igreja no mundo pós-moderno. Em “A Brief Apology” ele oferece o que caracteriza como um exercício na razão prática em um modo interrogativo, perseguindo a questão do papel que os católicos podem e devem exercer na sociedade francesa (como Delsol, ele faz apenas referências passageiras a cristãos não-católicos).
Marion argumenta que a situação na França, e no Ocidente em geral, é tão terrível que, para evitar a dissolução completa da sociedade, “devemos apelar a todos os recursos e todas as forças. Até os católicos”. Ele escolhe caracterizar essa situação como “decadência”, mais que “crise”. Essa decadência é de fato “uma crise da crise”, com o que ele quer dizer algo como o que Nietzsche quis dizer com niilismo moderno em seu “Crepúsculo dos Ídolos”: “’Não sei onde estou ou o que devo fazer. Eu sou tudo o que não sabe onde está ou o que fazer’ — suspira o homem moderno”. Isso também ecoa a crítica da modernidade feita há mais de meio século por Hans Urs von Balthasar, um dos mentores intelectuais de Marion, em “The Moment of Christian Witness” (“O momento do testemunho cristão”, em tradução livre). É precisamente pelo adiamento infinito do momento de crise que o mundo moderno derrota o Evangelho, pois o Evangelho é um chamado à crise que exige uma decisão. A alergia moderna à crise mina não apenas o catolicismo, mas também a própria sociedade ocidental. “Não estamos caindo no abismo, estamos sofrendo de uma decadência estagnada”.
Marion emprega a crítica de Agostinho a Roma como uma república que falhou em incorporar a verdadeira justiça, que requer adoração ao Deus verdadeiro. Marion argumenta que, porque a graça divina dá aos cristãos acesso à justiça, “somente eles podem defender, sempre apenas parcialmente, mas sempre efetivamente, cidades terrenas às quais fundamentalmente não pertencem”. É precisamente o status “de fora” dos cristãos na sociedade que lhes permite ir além dos estreitos interesses nacionais para a verdadeira justiça e comunhão. O lema da República Francesa – liberté, égalité, fraternité – só é realizável se houver uma paternidade universal que une todas as pessoas: “O único Pai concebível que pode assegurar a fraternidade justa e real, porque assegura a união na comunhão, encontra-se no céu; só de lá pode vir à terra”. Marion rapidamente observa que a República, sendo um Estado laico, obviamente não pode incorporar isso em seu lema, muito menos em sua constituição, mas “os católicos podem testemunhar essa paternidade em uma sociedade de órfãos”.
Dada a forte conexão que ele traça entre o cristianismo e a verdadeira justiça, a adesão de Marion à laicidade (laïcité) da República Francesa pode parecer surpreendente. Esse abraço o distancia do integralismo e de seus argumentos a favor de uma ordem política cristã, que ele descarta como “uma ilusão”. Mas ele faz isso também por razões teológicas positivas, invocando pensadores como Ivan Illich e Charles Taylor para argumentar que primeiro o judaísmo e depois o cristianismo “dessacralizam” o mundo, e a política mundana junto com ele.
Sua exposição e defesa da laïcité dependem primeiro de um duplo uso desse termo: de um lado, pode ser uma palavra neutra para a renúncia da esfera secular à competência em assuntos religiosos; de outro, pode significar uma anti-religião agressivamente secular. O sentido mais neutro do termo simplesmente identifica um reino distinto do sagrado, parte da estrutura da diferença que é parte integrante da ordem providencial do mundo. Laïcité no sentido negativo é precisamente a violação dessa estrutura de diferença, uma ultrapassagem do profano no reino do sagrado, primeiro, banindo-o e, por fim, o substituindo. Marion escreve que esse tipo de laïcité poderia se tornar “um quarto monoteísmo, como o primeiro monoteísmo sem Deus, o mais abstrato e, portanto, o mais perigoso”.
Ao defender uma noção positiva de läicité, Marion apela à distinção de Pascal entre as ordens de corpos, mentes e caridade para defender a incomensurabilidade dessas três ordens e a primazia da ordem da caridade. Essa distinção “nos permite identificar a neutralidade do Estado com a primeira ordem” – ou seja, a esfera de preocupação própria do Estado são os atos corporais de seus cidadãos – “e validar sua impotência positiva para ver (e, mais ainda, para julgar) a ordem da mente (liberdade de pensamento, pesquisa, etc.) e sobretudo a ordem da caridade (liberdade de consciência, de crença e descrença, ou de ‘religião’ e de mudança de religião)”. A verdadeira laïcité requer que o Estado abrace sua cegueira e incompetência em relação à crença religiosa. Marion se baseia em Pascal aqui, mas um estadunidense pode ser perdoado se ouvir ecos de John Courtney Murray.
Quando Marion se volta para a contribuição positiva que a Igreja pode dar à sociedade, ele aponta novamente para o status “de fora” ou “de outro mundo” dos cristãos: “Eles tornam o mundo menos inabitável, porque seu objetivo não é estabelecer-se nele em perpetuidade, mas começar a viver no mundo de acordo com outra lógica e, de fato, já pertencem a outro mundo”. A orientação cristã para outra lógica, outro mundo e, em última análise, para um Outro transcendente, está no cerne do relato de Marion sobre o que o cristianismo oferece ao Ocidente pós-moderno. Ele vê o triunfo do mercado no Ocidente como uma forma de niilismo prático que oblitera a diferença reduzindo tudo ao seu valor econômico: “A economia repousa sobre uma possibilidade de abstração, que reduz tudo a dinheiro, e assim estabelece a equivalência entre coisas que na realidade nada têm em comum; daí a possibilidade de troca universal”. Nossa mania de colocar um preço em tudo oblitera a diferença, reduzindo-a a uma mesmice monetária em que as coisas se distinguem não qualitativamente, mas quantitativamente. Tal redução destrói nossa capacidade de apreender um bem que é qualitativamente outro.
Esta é a manifestação social da vontade de poder de Nietzsche, a vontade que não quer nada além de seu próprio aumento. Tal vontade, escreve Marion, torna uma pessoa “escrava do pior dos senhores, ela mesma”, e ser libertado dessa escravidão envolve “alcançar e estabelecer uma coisa para o bem, uma coisa em si, que é uma coisa fora de mim”. Isto é precisamente o que o cristianismo oferece: “Só aquele que se desprende do niilismo, imitando Cristo, consegue não querer sua própria vontade (querer), para querer de outro lugar e de outro lugar”. Tal bem pode tornar-se o bem comum de uma sociedade porque, embora irredutivelmente outro em sua transcendência sobre o mundo, não é abstrato como o valor monetário; antes, é concretamente “realizado na Trindade e manifestado de maneira trinitária por Cristo”. Isso oferece “um modelo político que é fundamentalmente apolítico… uma comunidade que visa a comunhão, porque na verdade ela vem da comunhão”.
O apelo à vida da Trindade e à vida de Deus encarnado oferece uma abertura para Marion concluir suas “breves desculpas” com uma discussão sobre o fenômeno da dádiva, tema que já explorou em outros trabalhos. Rejeitando o modelo de “dádiva-contradádiva”, que une dar e receber, Marion vê a dádiva seguindo “a lógica dos fenômenos eróticos”: “Isso cria as condições eventuais de uma dádiva em troca, mas não depende da realidade do retorno sobre o investimento, ou espere isso”. Essa lógica erótica ajuda a abordar a questão do exercício do poder pelos cristãos. Porque o dom é dado sem expectativa de retribuição, o cidadão católico pode, como o próprio Cristo, oferecer à comunidade política o seu dom de testemunho da verdadeira comunhão sem exigir o poder político como pré-condição ou prêmio esperado.
Ao contrário de Marion, Chantal Delsol é uma pensadora já conhecida por sua filosofia política, e “La Fin de la Chrétienté” (“O fim da cristandade”) continua uma linha de investigação já bem desenvolvida. Sua abordagem, influenciada por seu professor Julien Freund e sua apropriação do pensamento de Max Weber, é marcada por uma antropologia filosófica que reconhece a construção social e histórica da identidade humana sem abandonar totalmente a ideia de natureza humana. Nesse sentido, seu projeto não é diferente do de Alasdair MacIntyre. Isso a leva a prestar muita atenção ao jogo de contingências históricas em noções como dignidade humana. Em vez de uma identidade estática, a natureza humana é uma realidade dinâmica e em evolução – de fato, se algo é “essencial” para nossa natureza, é nosso desejo incessante de exceder essa natureza. Como ela escreve de forma memorável sobre a pessoa humana em seu livro “Qu'est-ce que l'homme?” (“O que é o ser humano?”): “Arraigado, ele quer se emancipar de suas raízes. Dito de outra forma, ele busca uma moradia inacessível através de uma sucessão de estações de passagem temporárias”. O resultado é uma antropologia agostiniana do “coração inquieto” modulada pela consciência histórica pós-moderna. Tudo isso informa seu relato sobre o destino do cristianismo no Ocidente contemporâneo.
Os leitores de língua inglesa podem se enganar pelo título de La Fin de la Chrétienté. O termo “chrétienté” não se refere ao que chamaríamos de “cristianismo”, entendido como uma comunidade de crença e prática (o que os franceses chamam de christienisme), mas sim à formação sociopolítica a que nos referimos como “cristandade”. Delsol descreve isso como “a civilização inspirada, ordenada, guiada pela Igreja”, que durou dezesseis séculos, começando com a vitória de Teodósio na Batalha do Rio Frígido em 394 d.C., mas que agora está em agonia. O livro de Delsol pode ser considerado uma autópsia preventiva, comparando uma cristandade moribunda com a morte da civilização pagã no final do mundo antigo — uma morte provocada pela própria cristandade.
Delsol começa examinando como uma Igreja que resistiu tão resolutamente à modernidade por dois séculos em nome da civilização cristã, desde a década de 1960, passou a abraçar valores modernos como a liberdade religiosa – valores totalmente em desacordo com a cristandade. Ela oferece uma análise do fascismo e corporativismo do início do século XX como tentativas integralistas de salvar a cristandade que “se provaram piores que a doença”. Animados por uma nostalgia utópica que provou ser apenas a imagem espelhada do futurismo utópico da modernidade, esses tipos de movimentos foram vítimas de quem, como Charles Maurras, queria a cristandade, mas não se importava com o próprio cristianismo. No final, argumenta Delsol, tais movimentos não passavam de “convulsões de uma cristandade moribunda”.
Enquanto Marion e Delsol veem o integralismo como um esforço condenado para ressuscitar a cristandade, Delsol está menos confiante do que Marion de que a cristandade pode ser substituída por uma forma benigna de laïcité, em parte porque ela é geralmente cética de que qualquer sociedade possa de fato ser secular. A secularidade é uma fantasia concedida pelos intelectuais, mas para as pessoas comuns, “quem o bom senso sussurra que há mistérios atrás da porta”, algum tipo de religião é inevitável. Nosso momento atual, ela argumenta, não é de secularização, mas de revolução “no sentido estrito de um retorno cíclico”. O paganismo antigo renasce, embora em novas formas marcadas pelos dezesseis séculos intermediários da cristandade. Essa revolução envolve uma espécie de transvaloração nietzschiana tanto na moral (o que ela chama de “a inversão normativa”) quanto na visão de mundo (“a inversão ontológica”).
Delsol tenta manter um certo distanciamento analítico ao descrever essas inversões de normas morais anteriores, lançando-se como observadora desse momento de transição histórica e não como partidária. Ainda assim, ela insiste no significado dessa inversão. Ela acredita que os costumes de uma sociedade formam a arquitetura básica de sua existência, uma estrutura mais estável que as leis codificadas, moldando não apenas as ações daqueles que a integram, mas também seus sentimentos e hábitos. Como qualquer pai reconhecerá (Delsol é mãe de seis filhos), “as crianças são sempre educadas mais por seus tempos do que por seus pais”.
Para esclarecer nossos próprios tempos, Delsol relembra o nascimento da cristandade, a última grande inversão de normas no Ocidente. Ela insiste em duas afirmações que podem parecer contraditórias à primeira vista: o advento da cristandade foi uma ruptura radical com o passado pagão, e também era impensável sem esse passado como base sobre a qual se construiu. Os cristãos construíram sua civilização usando elementos da cultura pagã, em particular a moral estoica, embora agora “democratizada” e ressignificada dentro de um novo sistema de crenças que transformava o que era apropriado.
Como Marion, Delsol vê a “alteridade” como uma chave para a inovação do cristianismo. Em contraste com o mundo religioso profundamente unificado dos romanos, no qual os deuses e a humanidade eram concidadãos do cosmos, o cristianismo “introduziu um dualismo entre o temporal e o espiritual, o aqui-agora e o além, seres humanos e Deus”. O advento da cristandade trouxe uma forte reversão das atitudes da sociedade em relação ao divórcio, aborto, infanticídio, suicídio e homossexualidade. Delsol demonstra uma profunda simpatia por aqueles romanos pagãos, conservadores dos valores tradicionais, que sentiram que com o advento da cristandade haviam entrado em “um mundo intelectual e espiritual dilacerado”, e ela mostra genuína admiração por aqueles que continuaram batalhando contra o que era claramente uma derrota inevitável.
Então também em nossos dias, os partidários da cristandade lutam a serviço do que é manifestamente uma causa perdida. Delsol aponta para mudanças nas leis e atitudes populares em relação ao divórcio, aborto e reprodução assistida. Embora existam resistências a esses desenvolvimentos (particularmente, ela observa, nos Estados Unidos), o caminho desse arco é claro: “O humanitarismo, a moralidade de hoje, é uma moral inteiramente orientada para o bem-estar do indivíduo, sem qualquer visão da pessoa humana [visão antropológica]”. O que vemos é uma “inversão da inversão”, uma ruína da revolução do século IV que transformou os ideais do cristianismo em normas socialmente impostas. Alguns diriam que isso é o resultado de nossa progressiva percepção da inviolabilidade da consciência individual em relação às questões últimas, mas Delsol resiste às narrativas progressistas: “Em cada época, ‘progresso’ consiste simplesmente em conciliar realidades (leis, padrões, costumes) com crenças difusas e às vezes ainda não expressas que evoluem em silêncio”.
Isso sugere que os seres humanos não são simplesmente comportados, mas também crentes. As normas morais do mundo antigo mudaram porque as crenças do cristianismo suplantaram as do paganismo, fazendo com que práticas pagãs aceitas de repente pareçam odiosas. Delsol cita Tácito: “[Cristãos] consideram profano tudo o que consideramos sagrado e, por outro lado, permitem que tudo o que consideramos seja abominável”. Como Marion, Delsol atribui ao judaísmo e ao cristianismo um papel fundamental na dessacralização do mundo. O dualismo do cristianismo, com seu Deus transcendente acima e contra o mundo que Ele criou, substituiu o “cosmoteísmo” da antiguidade, que via o próprio cosmos como saturado de divindade. Ou, mais precisamente, o monoteísmo foi colocado em cima do cosmoteísmo, uma “religião secundária” cobrindo (mas apenas um pouco) a “religião primária” da humanidade, que “surge, por assim dizer, por conta própria, prolifera sem fertilizante, e instantaneamente ocupa e reocupa um lugar tão logo esteja livre”. Essa reocupação do espaço desocupado pela cristandade é o que enfrentamos hoje. O cristianismo foi substituído não pelo ateísmo e pela secularização, como os filósofos iluministas previam, mas por uma religião “mais primitiva e mais rústica”.
Hoje, esse cosmoteísmo primitivo e rústico assume várias formas, talvez de forma mais poderosa no surgimento do ambientalismo como uma espécie de religião popular. Nietzsche estava certo ao apontar para a “sobrenaturalidade” do cristianismo como um repúdio ao mundo antigo, e o repúdio contemporâneo da cristandade é alimentado pelo desejo de focar novamente neste mundo como nosso verdadeiro lar. “Para o monoteísta, este mundo é apenas um alojamento temporário. Para o cosmoteísta é uma morada. O espírito pós-moderno está cansado de viver em alojamento…. Ele quer ser reintegrado ao mundo como um cidadão pleno, e não como um ‘estrangeiro residente’”.
Delsol aponta os diversos escritores que descreveram a modernidade como parasita do cristianismo, mas ela prefere falar da modernidade como um “palimpsesto” escrito sobre o texto cristão, assim como o cristianismo foi escrito sobre o texto da antiguidade. É sempre assim que as sociedades humanas funcionam: “Usando todos os materiais possíveis do passado, mas os privando de seu significado para reinventá-los em benefício de uma nova época”. Assim como a cristandade substituiu o paganismo, uma religião fundada no mito, por uma que alegava estar fundada na verdade – e perseguiu aqueles que negavam essa verdade – agora, em nosso momento pós-moderno, a “verdade” mais uma vez foi eclipsada pelo mito. No entanto, esse novo mito é inextirpavelmente marcado pelo apelo cristão à “verdade”, pois não gera tolerância, como faziam os mitos da antiguidade, mas retém o universalismo da cristandade que o substituiu. Para Delsol, “[os militantes woke] tomaram o conceito de verdade dogmática e excluíram seus adversários da vida pública, assim como a Igreja excomungou em tempos passados”.
O destino do Ocidente não é o niilismo nem a antiga religião pagã, mas o humanitarismo, “as virtudes evangélicas... recicladas para se tornar uma espécie de moralidade comum”. Mas, pergunta Delsol, “o que será dos princípios que não podem mais se reabastecer permanentemente, tendo sua fonte banida?”. Ficamos com o que Delsol chama, invocando “Sangue sábio” (1952), de Flannery O'Connor, “a Igreja sem Cristo”, e suspeita-se que Delsol concordaria com O'Connor em “A memoir of Mary Ann” que, na ausência de fé, “nós governamos por uma ternura que, há muito tempo isolada da pessoa de Cristo, está envolta em teoria. Quando a ternura é desvinculada da fonte da ternura, seu resultado lógico é o terror”.
A culpa desse resultado pode ser atribuída aos pés da própria cristandade: “Na pretensão de se estabelecer como civilização, o cristianismo acabou produzindo um avatar monstruoso que é ao mesmo tempo seu alter-ego e seu inimigo mortal”. Mas, Delsol nos lembra, a cristandade não é cristianismo, e o fim do primeiro não é o fim do segundo. Ela tem receio do excessivo orgulho cristão do passado, “que pode se assemelhar ao masoquismo”. Nós corretamente julgamos que aspectos da cristandade foram distorções do Evangelho, mas Delsol, como boa historicista, vê pouco sentido em condenar aqueles no passado que não tiveram o benefício de nossa retrospectiva. Delsol não está para louvar nem para condenar a cristandade, mas para enterrá-la.
Ela está preocupada, porém, que em seu medo de repetir os erros da cristandade, os cristãos acabem silenciando sua voz distinta. No final do livro, ela passa do descritivo para o prescritivo: “Diálogo não é dissolver-se nas teses do adversário, e não é preciso deixar de existir para ser tolerante – na verdade, o contrário que é caso”. Este não é o apelo integralista para um retorno à cristandade. É, como Delsol coloca, um chamado para “uma revolução espiritual”, que pelos padrões mundanos pode parecer uma derrota. Os cristãos devem formar seus filhos “para se portarem como os cavaleiros da fé de Kierkegaard: resignados, mas também capazes de caminhar em direção ao infinito”. Para Delsol, como para Marion, a categoria de “testemunha” é fundamental. Os cristãos sem cristandade devem assumir o papel de testemunhas em vez de governantes, e aprender as virtudes características de uma minoria: “Equanimidade, paciência e perseverança”. Os cristãos não devem tomar Sepúlveda como modelo, quem justificou a conversão pela conquista das Américas, mas o martírio dos monges trapistas de Tibhirine, mortos porque não abandonaram seus vizinhos muçulmanos.
Existem pontos claros de convergência entre Marion e Delsol. Ambos rejeitam o integralismo e buscam um modus vivendi prático dentro da atual ordem sociopolítica. Nenhum deles pensa que o Reino de Cristo exige que os cristãos tenham as mãos sobre o poder temporal. E nenhum deles deseja abraçar um progressismo que diluiria o testemunho cristão em uma espiritualidade vaga. Marion, em particular, é resolutamente cristocêntrico em sua abordagem: “Para entender os católicos, primeiro é necessário descobrir o que os motiva: Cristo”. Este é especialmente o caso quando se trata de determinar o sucesso ou fracasso da Igreja: “[Cristo] nunca garantiu que ela se tornaria uma maioria, ou dominante no mundo: ele apenas pediu que ela passasse pela mesma experiência da cruz, que ele ganhou a Ressurreição”. É através do testemunho, não através da coerção, que a Igreja se engaja ao mundo e procura mudá-lo.
Mas também há diferenças importantes entre os dois. O tom de Delsol é mais combativo que o de Marion. Isso é, em parte, uma diferença de estilo intelectual – entre um teólogo-filósofo que normalmente opera de modo especulativo e abstrato e um sociólogo-filósofo que brinca com a história. Mas há também uma diferença substancial. Marion ainda opera dentro do modelo de “Nova cristandade” de Jacques Maritain, no qual o papel público da Igreja é fornecer ao Estado os valores necessários para sustentar o que Maritain chamou de “a fé secular democrática”. Essa fé era, se não cristã, pelo menos “inspirada pelo cristianismo”, e formou um povo que “pelo menos reconhecia o valor e a sensibilidade da concepção cristã de liberdade, progresso social e estabelecimento político.
Delsol rejeita explicitamente o modelo da Nova Cristandade de Maritain, chamando-o de uma das “últimas ilusões” do pós-guerra. Isso está de acordo com sua rejeição da ideia de que a modernidade é secular, mesmo no sentido benigno de laïcité de Marion. A visão de Maritain e Marion da Igreja suprindo a nação moderna com algo que lhe falta está em desacordo com a afirmação de Delsol de que a sociedade contemporânea de fato possui suas próprias normas morais e sistema de crenças: cosmoteísmo neopagão. Se ela estiver certa, então não há lacunas para as crenças e valores cristãos preencherem; o espaço que ocupariam já está repleto de crenças e valores alternativos.
“A Brief Apology for a Catholic Moment” de Marion ecoa o título do livro de Richard John Neuhaus “The Catholic Moment: the paradox of the Church in the Postmodern World”, de 1987. Ambos os livros veem a Igreja como servindo um papel social vital dentro de um estado religiosamente neutro. À luz desse acordo, é tentador colocar Delsol no papel de amiga de Neuhaus, como Stanley Hauerwas, o contrariado que insiste no conflito inextirpável entre Igreja e mundo, e sugere que “momentos católicos” podem ser simplesmente nostalgia dos salões do poder. De fato, imediatamente após sua crítica a Maritain, Delsol cita o aluno de Hauerwas, William Cavanaugh, como uma abordagem alternativa, que se concentra na Igreja como o que o Papa Francisco chamou de “hospital de campanha”, presente para não fornecer valores a um mundo secular, mas curar suas feridas.
Por fim, podemos notar como Marion e Delsol abordam o tema que tem assombrado a Igreja nas últimas duas décadas: a crise dos abusos sexuais. Seria de esperar que o contratestemunho desse escândalo fosse de particular preocupação para os pensadores que dão primazia ao “testemunho” como modo de engajamento da Igreja com o mundo. Mas Marion menciona a pedofilia apenas em uma breve nota de rodapé amplamente dedicada a apontar a presença de pedófilos em outras comunidades e organizações. Para ser justo, seu livro foi lançado na França muitos anos antes da Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja publicar seu relatório contundente sobre abuso sexual na Igreja Francesa. Não obstante, algo que Marion diz nos faz pensar se o seu silêncio sobre esta questão é inteiramente acidental. No início do livro, ele observa: “Somente os santos falam corretamente de Deus e estão qualificados para criticar a Igreja e os católicos”. Ele então escreve algumas páginas depois que “aquele que crê seriamente e pratica a fé se esquece de se ocupar da reforma das instituições eclesiásticas”. Marion está, sem dúvida, correto ao alertar os católicos para que deixem de obsessão com a política eclesiástica e se concentrem no coração do Evangelho. Mas isso ainda deixa a questão de como a reforma é possível em uma Igreja com poucos santos e uma hierarquia com um histórico ruim de policiamento. Nas últimas décadas, católicos comuns e não santos – e muitas vezes, infelizmente, ex-católicos – desempenharam um papel fundamental na responsabilização da Igreja. Uma eclesiologia idealizada que parece ignorar esse fato dificilmente é adequada ao nosso momento.
Delsol, sem surpresa, tem pouca tendência a idealizar a Igreja. Embora o relatório da Comissão Independente ainda não tivesse sido publicado quando ela escreveu seu livro, já estava claramente no horizonte, e ela aborda o escândalo em algumas passagens. Ela observa que a pedofilia, agora criminalizada, já foi considerada pela Igreja e pela sociedade em geral “um mal menor que se suporta para proteger famílias e instituições”. Ela repete esse ponto mais tarde, observando que o que foi visto como um passo em falso relativamente pequeno em um momento – “dano colateral” – tornou-se, posteriormente, um crime contra a humanidade. Tudo isso se encaixa com seu relato historicista das normas morais e sua tendência, ao escrever em seu modo analítico, de evitar julgamentos morais sobre o passado, que tinha suas próprias normas muito diferentes.
Mas Delsol também é capaz de sair desse modo analítico e falar de forma mais normativa como membro dos fiéis católicos, e aqui seus julgamentos são mais afiados. Ela vê a catástrofe do abuso sexual como evidência dos efeitos distorcidos que a cristandade teve na fé cristã. “A Igreja se comporta como uma instituição governante e dominante, acreditando que tudo o que é proibido aos outros é permitido para ela”. Instituições culturais poderosas muitas vezes se convencem de que, à luz de seu importante papel social, não podem se dar ao luxo de dizer a verdade. Pela graça da providência e pelas vicissitudes da história, a Igreja, libertada da cristandade, está agora em melhor posição para testemunhar a verdade, mesmo que seja a verdade de seus próprios fracassos.
Esses dois breves livros são ricos em recursos para reflexão. À medida que a Igreja nos Estados Unidos enfrenta a realidade de desfiliação acelerada entre os jovens, a experiência da Igreja na França, que há muito luta com a descristianização, adquire maior relevância. Marion e Delsol nos ajudam a ver como os católicos em uma sociedade cada vez mais pós-cristã podem testemunhar sua fé sem amargura ou nostalgia – e talvez até com alegria.